segunda-feira, 12 de maio de 2014

A importância da arte num sistema educacional decadente

A educação básica brasileira está gritantemente equivocada em seus princípios mais básicos. A maior prova da decadência do sistema atual é que, simplesmente, estudar é algo chato por definição. E isso não representa um problema individual do aluno, o problema se encontra no sistema. Não importa o quão genial e bem-sucedido é o estudante, a forma como os conteúdos são apresentados hoje é deprimente. Dessa maneira tem sido extremamente complicado fazer despertar o interesse individual de cada estudante. Hoje se estuda por obrigação. Se estuda para passar na prova, para passar de ano, para passar no vestibular em algum curso bem estimado, enfim, para passar pela aprovação da sociedade e passar a ser mais um adulto socioeconomicamente funcional e bem-sucedido. É um sistema arbitrário, mecânico, dogmático. Como um sistema de produção em série, onde todos são iguais, visando o mesmo objetivo fundamental, e suas individualidades não são exploradas ou são reprimidas. Mas não! Ninguém é igual a ninguém. Cada um é um universo individual complexo aflorando potenciais que devem ser respeitados e valorizados.

Talvez por minhas habilidades deducionais intrínsecas, felizmente eu nunca precisei me esforçar muito para ser aprovada nas provas do ensino médio e no vestibular. É relevante considerar que na época eu era uma adolescente bem revoltada contra várias coisas - como se isso tivesse mudado muito até hoje -, e muitas vezes simplesmente me negava a aprender algo que eu considerasse muito chato ou insignificante para o meu futuro. Eu não acho que estava completamente certa, mas indubitavelmente aquelas aulas de física moderna teórica eram o extremo oposto de estimulantes. E eu não quero de maneira alguma aqui acusar individualmente os meus professores. O problema não é cada um deles, o problema é histórico e está amplamente implantado na raiz do sistema educacional brasileiro. A profissão de professor é deprimentemente desvalorizada no país. E isso tudo deve ser visto como um grande ciclo vicioso, já fortemente estabelecido e de difícil intervenção, mas que precisa ser quebrado urgentemente.

Eu tenho que aproveitar e contar um momento marcante do meu ensino médio aqui. O meu professor de história costumava indicar a leitura de algum livro relacionado ao tema que estava sendo ensinado na sala de aula e que seria também conteúdo de avaliação da disciplina. Eu sempre considerei uma abordagem muito válida, mas, honestamente, tenho certeza que eu era uma das únicas pessoas que realmente lia os livros - me desculpe professor, mas eu confesso que algumas vezes fiz resumos dos livros e distribuí aos meus colegas (já que eles não iriam ler de nenhuma forma, eu concluía que pelo menos desse jeito eles iriam compreender ao menos em parte a intenção do livro, o que é melhor do que nada né?). Enquanto aprendíamos sobre a Revolução Francesa, o professor indicou a leitura do A Revolução dos Bichos, um clássico do Orwell. Eu adorei! Na época eu até já o havia lido. Contudo, para o meu total e completo assombro, alguns dos meus colegas simplesmente achou ridículo um livro onde animais falassem. Como assim minha gente?!?!? Pois é, dessa vez eu me neguei a fazer algum resumo. Aí eu pergunto: de quem é a culpa? Do aluno? Dos pais? Do professor? Do governo? Bem, todos detém uma porção da culpa, mas quem tem um poder de intervenção mais básico, mais fundamental e mais amplo certamente é o governo.

O berço da educação do Brasil foi instituído pelos jesuítas, num sistema missionário tradicional. Com eventuais e progressivas mudanças, a abordagem educacional se manteve sempre nesse mesmo sentido: a transmissão dogmática de fatos e conceitos. Até que num belo dia do ano de 1964 veio a ditadura militar e aí sim ferrou com qualquer esperança de progresso educacional. A nossa cicatriz é grande, e quando eu falo que o problema começou cedo, estou falando sério. O modelo que vemos nas escolas é fundamentado nesses pilares arcaicos, monótonos, retrógrados. É claro que estudar vai ser chato assim!

Toda criança nasce naturalmente curiosa, com um desejo intrínseco de querer conhecer o mundo. Esse é um terreno de essencial importância que merece uma atenção especial e intervenções delicadas. Uma das maiores violações (se não a maior) cabíveis à um ser humano é arbitrariamente reprimir esse tipo de pensamento questionador. Isso é terrível, e pensar muito sobre me deixa muito triste. Toda criança tem algum comportamento esquizoide, e isso é completamente saudável e desejável. Nós devemos permitir e estimular que ela desenvolva seu potencial criativo ao máximo. Aqui eu não digo que ela deva acreditar em papai noel, mas que ela possa questionar o porquê de o céu ser azul sem receber "porque sim" ou "porque deus quis" como resposta. E bem, se existe um desejo natural de aprender na infância e no final do ensino médio o estudo virou algo desinteressante, evidentemente há algo muito errado aí no meio.

Eu claramente vejo a educação como o pilar fundamental da sociedade. Em todos os seus aspectos, a sociedade é um reflexo da educação. Não nos interessamos por política? Votamos em políticos ruins? E o que é de se esperar quando o estudante não aprende nem como funciona o sistema político do seu próprio país? Para um governo ditatorial, não é nem um pouco interessante que os jovens saibam como funciona a organização política governamental, nem que sejam estimulados a questionar o que lhes é ministrado. Pensamento e auto-expressão são coisas perigosas demais para um sistema autoritário. Em toda ditadura que se preze, não se quer que as pessoas questionem nada do que lhes é passado como verdade nem que exerçam suas individualidades ou fujam do padrão. O que se busca são indivíduos sistematicamente estereotipados repetindo ideais meticulosamente articulados e pré-definidos pelo governo (olha o Orwell por aí de novo com o 1984!). Acho que já devíamos ter passado da fase, não é? Então, como podemos agir? Como fazer esse sistema decadente ascender? Bem, junto a tudo o que eu já sugeri aqui pelas entrelinhas, acho que eu tenho mais uma boa sugestão: com a arte.

Eu me refiro à arte como todo o tipo de atividade que desperta a criatividade, que desenvolve a sensibilidade e permite a auto-expressão. Pode-se livre e amplamente aplicá-la em todas as áreas e abordagens imagináveis, ou seja, não é preciso ser artista por profissão para exercer a arte. E a arte é uma ferramenta poderosa. Ela é capaz de ativar todas as regiões encefálicas e penetrar em todas as facetas da personalidade humana. Ela lida com uma parte do indivíduo que atualmente é deliberadamente ignorada no ensino escolar convencional. Inserir a arte no contexto de sala de aula ajudará a explorar todo um universo de potenciais emergentes até então silenciados. Mesmo que provavelmente a arte não possa ser diretamente associada a todos os conteúdos de uma maneira coerente, o importante aqui é a mudança que ela causa no contexto geral, o ponto-chave é a ligação da arte com a criatividade, a liberdade, a sensibilidade e a diversidade. Muitas vezes discreta e silenciosamente (ou não), a arte atua amplamente em inúmeros aspectos da sociedade. Mas ao mesmo tempo, eu sinto que a arte atualmente está em extinção. Está fora de moda. Em todo lugar: nas escolas, nas ruas, em casa, no papo de mesa de bar. A arte não é considerada algo normal, algo popular. A arte não é valorizada e muitas vezes simplesmente é ignorada. Eu realmente acredito que isso deve mudar e uma ótima forma de começar é no ensino básico.

Esse contexto de reforma educacional artística que eu proponho inclui alguns pontos importantes:
1) A extinção de restrições de pensamento e do ensino de hipóteses e conceitos como se fossem "verdades incontestáveis". A ampla abertura para questionamentos de todo tipo desde o primeiro contato escolar, o estímulo ao pensamento crítico, a inserção de momentos dedicados à discussão diariamente na sala de aula. O auxílio ao desenvolvimento de aptidões e interesses, o respeito e a adequação às dificuldades e limitações individuais.
2) A atenuação da divisão arbitrária das disciplinas e ensino isolado de cada uma. Tudo tem muito a ver com tudo, e as coisas se tornam muito mais interessantes quando inseridas em algum contexto que valorize todas as suas aplicações. Eu gosto de pensar que um universo é um só - pra falar da maneira mais ampla possível. Com maior ou menor intensidade, tudo e todos estão de alguma forma interligados. Pode-se explorar uma maneira muito mais interessante de ensinar física se considerando o contexto histórico em que Newton e Kepler viviam, por exemplo - sim, há uma alusão pessoal aí.
3) A aniquilação do vestibular como objetivo máximo universal inquestionável de todo jovem de 15 anos. Existe uma pressão social imensa e toda uma arquitetura escolar voltada ao vestibular. Mas o que é avaliado no vestibular simplesmente não é mais importante do mundo que existe lá fora do mundinho alienado em que os jovens são mergulhados.
4) O uso de ferramentas dinâmicas e criativas de ensino, usando e abusando da música, do teatro e da literatura, aplicação prática da campanha "menos quadro negro, mais saída de campo". 
5) A inserção do ensino de questões voltadas à organização socioeconômica e política corrente no país. Simplesmente não há como mudar o cenário político brasileiro quando a população não tem conhecimento sobre como a política funciona em seus aspectos mais básicos. Todo jovem deve ter a oportunidade de aprender sobre os seus direitos e deveres, sobre como são distribuídos os recursos governamentais, sobre como funcionam os sistemas legislativo, judiciário e executivo - confesso que eu mesma vergonhosamente não sei praticamente nada sobre isso.

Cada indivíduo é um universo único, complexamente estruturado em um conjunto de preferências, ideais e aptidões que se organizam de uma forma coerente e harmônica. Essa base individual fundamental deve ser explorada e desenvolvida como um todo. Assim, teremos um mundo com o que eu costumo chamar de pessoas de verdade. Pessoas que pensam, pessoas que sentem, pessoas que agem. E a educação tem um papel crucial nisso. Em minha experiência pessoal, o contato com a arte foi essencial para o desenvolvimento da minha personalidade e dos meus interesses. Eu me encontrei na música, na literatura e na ciência - a minha forma preferida de expressão artística.

Um comentário:

  1. algumas de tuas idéias estão alinhadas com os resultados encontrados pelo Ken Robinson ! Uma alíquota do que ele constata : https://www.youtube.com/watch?v=zDZFcDGpL4U

    ResponderExcluir