sábado, 18 de fevereiro de 2012

Mistureba Generalizada de Todas as Coisas

- Que diabos é você? – perguntou Random.
- Eu sou o Guia. No seu universo, sou o seu Guia. Na verdade, habito o que é tecnicamente conhecido como a Mistureba Generalizada de Todas as Coisas, que significa... bom, é melhor te mostrar.
[...]

- Olhe para a chuva... – disse o pássaro-Guia.
- Estou olhando para a chuva! O que mais tem para olhar?
- O que você está vendo?
- Como assim, seu pássaro idiota? Estou vendo um monte de chuva. É apenas água caindo.
- Que formas você vê na água?
- Formas? Não tem forma nenhuma. É só uma... uma...
- Só uma Mistureba Generalizada – completou o pássaro-Guia.
- É...
- E agora, o que você está vendo?
Quase no limite da visibilidade, um feixe tênue e fino transbordou dos olhos do pássaro. No ar seco, protegido pela marquise, não se via nada. Mas nos pontos onde o raio atingia os pingos de chuva conforme caíam havia uma lâmina de luz tão brilhante e viva que parecia sólida.
- Uau, que ótimo. Um show de lasers – comentou Random, debochada. – Nunca vi um desses antes, é claro, só em uns cinco milhões de shows de rock.
- Diga-me o que você está vendo!
- Apenas uma lâmina plana! Pássaro burro.
- Não há nada ali que não estivesse ali antes. Só estou usando a luz para chamar a sua atenção para determinados pingos, em determinados momentos. E, agora, o que está vendo?
A luz se apagou.
- Nada.
- Continuo fazendo a mesma coisa, só que com luz ultravioleta, que você não consegue ver.
- E de que adianta me mostrar uma coisa que eu não consigo ver?
- Para que você entenda que só por que consegue ver uma coisa mão quer dizer que ela esteja lá. E que, se você não vê uma coisa, não significa que ela não esteja. Tudo se resume ao que seus sentidos fazem com que você note.
[...]
 - Percepção sem Filtros significa que você percebe tudo. Entendeu? Eu não percebo tudo. Você não percebe tudo. Temos filtros. O novo Guia não possui nenhum filtro sensorial. Ele percebe tudo. Nem era uma ideia tecnológica muito complicada. Era só questão de deixar algo de fora. Entendeu?
- Por que não digo simplesmente que entendi você continua falando do mesmo jeito.
- Certo. Agora, como o pássaro pode perceber qualquer universo possível. Entendeu?
- En...ten...diiiiiii.
- Então o que acontece é o seguinte: os palhaços dos departamentos de marketing e contabilidade dizem "Ah, que ideia genial, isso quer dizer que só precisamos fazer um desses e depois vamos vendê-lo um número infinito de vezes!". Não faz essa cara, Arthur, é assim que os contadores pensam!
- Mas é bem inteligente, não?
- Não! É incrivelmente burro. Veja bem: a máquina é apenas um pequeno Guia. Tem uma cibertecnologia bem interessante lá dentro, mas, por conta da Percepção sem Filtros, qualquer mínimo movimento que o Guia faça tem o poder de um vírus. Ele pode se propagar pelo espaço, pelo tempo e em um milhão de outras dimensões. Qualquer coisa pode se focar em qualquer lugar em qualquer um dos universos nos quais transitamos. O seu poder é recusivo. Imagine um programa de computador. Em algum lugar existe uma instrução principal e todo o resto não passa de funções recursivas, ou parênteses se propagando em uma enorme onda sem fim através de um espaço infinito de endereçamento. E o que acontece quando os parênteses colapsam? Onde fica o derradeiro end if? Isso por acaso faz algum sentido? Arthur?
- Foi mal, dei uma cochilada rápida. Era alguma coisa sobre o universo, não era?
- Alguma coisa sobre o universo, é - disse Ford, exausto. Sentou-se novamente.

(Trechos do livro “Praticamente Inofensiva”, volume cinco da série “O Mochileiro das Galáxias”, Douglas Adams - cap. 17 e 18)



Ao longo da existência da humanidade, desenvolvemos uma capacidade essencial à evolução e manutenção da espécie, a capacidade de adaptação. Contudo, ao mesmo tempo com que ela existe e permanece para aprimorar a nossa desenvoltura sob a Terra, também pode acabar por comprometer a nossa visão de mundo. A evolução aconteceu através da adaptação ao meio com o objetivo de conseguir aproveitar ao máximo os recursos existentes. A nossa percepção de mundo foi guiada por esse objetivo, vemos o que está ao nosso redor da forma que melhor nos convém, em prol de nossa própria sobrevivência. Bem, mas obviamente nada garante que a maneira mais conveniente é a mais verdadeira.

A Mistureba Generalizada de Todas as Coisas é, ao meu ver, como "Deus". Sim. Ela é a ocorrência de todas as possibilidades com relação a tudo o que existe. É a onisciência, onipotência e onipresença. A soma de todas as probabilidades, de todos os universos e dimensões, mas que não tem, por si mesma, tamanho algum. Agora, NÃO ENTRE EM PÂNICO. A Mistureba Generalizada não é nenhum vogon, muito menos alguma Besta Perfeitamente Normal. Ela não é nada de mais, é simplesmente tudo. E está aí, silenciosa e incessante como sempre vai estar. Ela não é boa nem má, ela apenas é. A nua e crua probabilidade. É possível alguma visão mais bonita de um Deus?